sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Realidade gaúcha

JUREMIR MACHADO DA SILVA

arte: Pedro Lobo
Já vou parar com estes textos sobre História. É o último desta série. Engana-se quem pensa que a situação dos escravos no Rio Grande do Sul foi melhor ou que tivemos menos cativos. Chegamos a ter quase 40% da população cativa. Em algumas cidades, bem mais. Em 1874, o Rio Grande do Sul (21,3%) só perdia, na relação escravos/população total, para Rio de Janeiro (39,7%) e Espírito Santo (27,6). Essa população diminuiu bastante até a abolição, mas não só por virtude. Parte considerável dos machos vigorosos foi vendida para o Sudeste produtor de café. Velhos "inúteis" e crianças podiam ser libertados. Fomos a única província do Oeste e do extremo Sul, segundo Robert Conrad, a votar contra a "Lei do Ventre Livre", que, apesar do saco de bondades brancas, resultou em certo avanço, ainda que moderado.

A violência da escravidão no Rio Grande do Sul pode ser constatada em obras de viajantes ou em textos recentes de historiadores como Mário Maestri e Paulo Moreira. Os argumentos dos que se opuseram a "Lei do Ventre Livre" revelam as origens dos nossos costumes. Os membros do Clube da Lavoura e do Comércio, uma espécie de Confederação Nacional da Agricultura da época, alegavam que nada podia atentar contra o sagrado direito da propriedade privada e que tinham direito adquirido sobre os filhos dos escravos. O visconde de Itaboraí argumentou que a culpa não era dos brasileiros, pois era legal ter escravos, mas dos chefes africanos que os vendiam. Afora a infâmia do raciocínio hediondo, deixava de lado o fato de que desde 1831 já era proibido importar escravos.

Aos trancos e barrancos, D. Pedro II contou muito para o fim da escravidão, que, como tudo no Brasil, inclusive as ditaduras futuras, precisaria ser superada de maneira lenta, gradual e restrita. Algumas leis poderiam ter sido aprovadas antes se, em 1868, o primeiro-ministro liberal e emancipacionista Zacharias de Góis não tivesse caído por ter batido de frente com um velho algoz de negros no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Maranhão e no Rio Grande do Sul, o glorioso Duque de Caxias, chefe das forças brasileiras na Guerra do Paraguai. Os reacionários achavam as indenizações pelas crianças muito baixas, ainda mais que 70 em cada cem delas morriam antes dos 8 anos. Não passava pela cabeça de nenhum deles, embora passasse pela mente de abolicionistas, que indenizados deveriam ser os escravos.

Em quantos anos prescreve um crime contra a humanidade como o praticado pelo Brasil até 1888? Em quanto tempo prescrevem crimes como o de abandonar na roda dos expostos os bebês de escravas para alugá-las como amas de leite? Muitos juristas de então combatiam as leis abolicionistas declarando que elas eram inconstitucionais. Muitos negros buscaram a liberdade servindo no lugar dos seus valentes senhores na Guerra do Paraguai. Era uma troca permitida e alguns cidadãos até ganharam título de nobreza pela disponibilidade para enviar seus negros como voluntários nessa guerra desencadeada por o Brasil ter metido o seu bedelho nos negócios internos do Uruguai. Esse é o nosso passado.

O texto "Realidade gaúcha" foi originalmente publicado na coluna de Juremir Machado da Silva no jornal Correio do Povo de 18 de fevereiro de 2011.

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